segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Quinto de António Zambujo

 Há uns meses, levei uma amiga turca apreciadora de Fado a ver António Zambujo. Expliquei-lhe, na medida do possível, as contigências do que ele faz: é um fadista que não faz Fado. Ela, que conhece e aprecia Mariza, Amália, Camané ou Ana Moura, ficou, e com razão, confusa. Eu resolvi escrever a propósito - não da confusão, mas do Zambujo e do que ele anda a fazer. O resultado pode ler-se abaixo. Ele, entretanto, está de volta com um novo - o quinto - álbum: "O Quinto", pois então.


"A definição vem nos dicionários e não é complexa. “Fado: [Música] Canção popular portuguesa, geralmente interpretada por um vocalista (fadista), acompanhado por guitarra portuguesa e por guitarra clássica”. A definição é relativamente estrita. E o seu som, à força de puristas, também o seria: o fado tradicional tem apenas três raízes instrumentais comuns – o fado Menor, o Corrido e o Mouraria. Naturalmente, de tempos a tempos, a coisa estrebucha um bocado. Se alguém aparece com uma coisa menos ortodoxa, seja boa ou má – e têm surgido por aí algumas coisas (muito) boas – a preocupação é imediatamente distanciar-se do “Fado”. Que o Fado, sim, é uma influência, mas não passa disso, não os vão agora confundir com fadistas.
Acontece que os recentes desenvolvimentos – a famigerada distinção do Fado enquanto Património Imaterial da UNESCO – reposicionam definitivamente o Fado: este já não é de Lisboa (e o outro de Coimbra): é do Mundo. Na verdade, esta não é a primeira vez que as consciências caem nelas em relação ao tema: aqui há quatro anos, o realizador espanhol Carlos Saura fez abrir as bocas de espanto – e de indignação – ao realizar um documentário chamado “Fados” – com a bênção de entidades oficiais como a Câmara de Lisboa e de personalidades como Carlos do Carmo – quase na totalidade filmado em Madrid e arriscando ter mais de cinquenta por cento do filme ocupado com gente ligada a outros géneros musicais como o Hip Hop, a Morna ou a MPB. O exemplo foi extremo, mas foi também o prenúncio de uma perda de preconceitos que a bem ou a mal, o género terá que encarar. Tanto mais que os melhores intérpretes e músicos de Fado, são, hoje mesmo, revolucionários do género: basta dizer que, por exemplo, até a introdução do contrabaixo foi, no fado, uma revolução (feita apenas há “meia dúzia de anos”, pela mão de Carlos do Carmo).
Aqui entra, claro, António Zambujo. O homem não é de Lisboa. O homem é do Alentejo. O homem canta sentado. O homem não tem um vozeirão. O homem soa a Bossa Nova. A Música Popular Brasileira. A Cante Alentejano. Mas vai-se a ver, ao fim e ao cabo, é fadista – ele o diz, ele o canta. Aqui temos a novidade: o fado tem ido por caminhos ínvios pela mão de muita gente. Poucos, no entanto, o fizeram de tal modo temerário. Ser fadista é um compromisso. Não com a música. Mas com um sentimento, um estado de alma, se quisermos, com o querer sê-lo: Cristina Branco, por exemplo, que tem feito a sua carreira à volta do Fado e faz parte do “meio”, diz não ser fadista. Em sentido inverso, o alentejano António Zambujo lança-se à música com um pressuposto: Eu sou fadista. Depois junta-lhe o resto.
E o resto é uma miscelânea. É um fado que soa a muitas coisas (menos, o mais das vezes, fado): para além da guitarra portuguesa, da viola (guitarra clássica) que o próprio toca, junta-lhe mais o contrabaixo, o clarinete ou o – surpreendam-se! – cavaquinho. Mas a coisa vai além do instrumental. As influências são assumidas. O cante alentejano marca-o inegavelmente, tal como a MPB. E o facto de ser fadista de peito aberto não o faz ter pejos de, por exemplo, cantar Vinícius de Moraes, com o seu timbre de alentejano de Beja transplantado no Rio de Janeiro.
A voz, melosa, segura-lhe os silêncios com um jeito que não parece português (muito menos fadista): até o sotaque parece, por vezes, soar do outro lado do Atlântico. Ao ritmo ora do cavaquinho ora do trinado da guitarra portuguesa que faz respeitar, não deixa de, no entanto, “nos explicar” que o seu terreno é “o acústico”. Ao contrário do Fado tradicional, não há momentos apoteóticos em António Zambujo: esqueçam os “Ah fadistas!”, as vozes triunfais arrancadas de dentro da alma. Mas há outra coisa, há o assumir de um caminho: um caminho diferente para o Fado. É um caminho de vários que naturalmente não começam agora: é importante não esquecer o que andaram a fazer – e fazem ainda – Madredeus, Cristina Branco, A Naifa, Donna Maria, ou até os Deolinda. António Zambujo não faz melhor – nisto que alguns chamam de fado contemporâneo - nem pior do que os seus antecessores. Não vem ao caso. Faz diferente. E, no entanto, assume ao que vai – sem medos nem preconceitos. Para além de tudo – e o tudo é muito – este é o seu maior mérito".

sábado, 19 de maio de 2012

Um regresso inevitável

Aqui estou. Quase um ano depois. Tarde ou cedo, era uma inevitabilidade. Uma pessoa vive, ama, chora, ri, brinca, come, bebe, é tantas coisas diferentes em tantos sítios diferentes, vai a tantos sítios. Mas quando quero perceber quem sou, é aqui que volto: às palavras. Não é fácil. Engano-me. Digo para mim - e para uns outros que me perguntam: estou muito ocupado a viver - as palavras podem esperar. E não podem. Esqueço-me de mim. Esqueço-me dos muitos que fui e passo a ser só um. Este. E por isso aqui estou de volta. Quero-me agarrado a quem sou - e aos muitos que fui e ainda vou ser. Porque não me quero ler apenas nas palavras dos outros. E porque mesmo sabendo que outros o fazem melhor que eu, não tenho o direito de não o fazer.

Este espaço, que já foi meu - e que talvez volte, agora, a ser, assim ele o deixe - é-me simpático. Por várias razões: porque ele sou também eu. Porque Objecto Quase somos todos. Inacabados. Apenas coisas por cumprir. Por último: porque este sítio é deliberada e ostensivamente pré-Acordo Ortográfico. Por mim, assim ficaremos: o-b-j-e-c-t-o q-u-a-s-e.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Até no meio do caos há esperança

O momento era inusitado. Por várias razões. Mas uma nova experiência sempre é uma nova experiência. A minha última por aqui foi o hitchiking. À “boleia” de uma amiga polaca veterana, arrisquei a tentativa. O primeiro trajecto era curto: de Bujanovac até à fronteira com a Macedónia. Um pulo: 30 quilómetros, se tanto – o que, para primeira vez de polegar em riste, não me pareceu tão pouco assim. Mas o melhor ainda viria. Cinco minutos depois, parava um carro.
O condutor era um albanês radicado na Suiça, de férias de Verão na “terra (o irónico que isto soa, falando de Bujanovac – e não é) natal”. No pouco que conseguimos comunicar, no nosso esforçado mas incipiente sérvio, e no seu esforçado, mas ainda mais inexistente inglês, acabei por reter a mais curiosa informação da curta viagem: o nosso amigável motorista albanês, proveniente de uma das zonas mais conflituosas da Ex-Jugoslávia, estava a dar-nos a ouvir - e é um fã absoluto de - música sérvia. E afirma-o, a quem o queira ouvir – não saberei nunca se o fará com o mesmo á-vontade entre compatriotas - com um sorriso nos lábios.
Quando saí do carro, junto à fronteira da Sérvia com a Macedónia, e me propus a passá-la, a pé, de mochila quase vazia às costas, tinha reforçado o meu parco optimismo antropológico.

Skopje, Macedónia

Veles, Macedónia: Uma cidade entre as escarpas dos Balcãs e os morros brasileiros

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Bujanovac: uma cidade partida aos bocados

Não há volta a dar: tudo a ver com escolhas. Para um estrangeiro em Bujanovac, não há outro caminho. Até a mais simples das acções do dia-a-dia envolve uma. Mais: uma escolha nunca é só uma escolha. Neste caso, uma escolha é quase uma tomada de partido – mesmo que não seja dita uma palavra acerca da tensão latente no ar (e, às vezes, são ditas algumas em surdina).
As questões pairam: devo ir a uma mercearia sérvia ou albanesa? Devo ir a um barbeiro sérvio ou albanês? Devo expressar-me em sérvio (as três ou quatro palavras que sei) ou (uma vez que não sei nenhuma em albanês) inglês? Devo encontrar-me com um conhecido ou amigo sérvio, albanês ou cigano? E apesar de tantas interrogações, no fim de contas, não há partidos a tomar. De todo. Sérvios, albaneses ou ciganos são igualmente simpáticos, afáveis, mas não há meio de resolver um problema que começa à nascença: apesar de Bujanovac ser uma pequena cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, não é tão fácil – mesmo... - assim encontrar um sérvio que conviva com um albanês ou vice-versa.
Numa cidade tripartida (com uma maioria relativa sérvia de cerca de 36 por cento da população e cerca de 30 por cento de albaneses e ciganos), o problema vem da formação. E tanto como dela, do seu espaço físico: Bujanovac conta com dois estabelecimentos de ensino diferentes, um albanês, outro sérvio. Naturalmente, com conteúdos programáticos diferentes e leccionado em línguas diferentes (sérvio e albanês). E diferentes são também os destinos destes jovens. Se, por exemplo, um jovem sérvio de Bujanovac quiser prosseguir estudos universitários, pode fazê-lo em vários sítios. Naturalmente, na Sérvia: Nis, Novi Sad ou Belgrado serão as hipóteses mais prováveis. Por maioria de razões, o mesmo não acontece com um jovem albanês de Bujanovac: desconhecendo a língua, ou pelo menos tendo uma formação de referência albanesa, um jovem albanês aspirante a universitário terá que prosseguir estudos em Pristina, no Kosovo, ou Tirana, na Albânia.
Bujanovac é, por isso, uma cidade partida. Até gente (jovem) que não se conhece – ou que nem conheceu qualquer tipo de conflito (que durou até 2001, nesta zona, a poucos quilómetros do Kosovo) – está destinada a caminhar lado a lado, semi-ignorando-se mutuamente, sem que o seu presente ou futuro se cruzem por qualquer outra razão que não o facto de viverem num mesmo espaço geográfico.

Um pós-pequeno almoço na vizinhança em Bujanovac

Uma manhã com café e rakia e dois dedos de conversa em - sendo optimistas - sérvio, com os vizinhos Siniša e Lazar Stevanovic. (Foto: Nicat Abbaszada)